A Geometria não é só um dos ramos mais fascinantes da Matemática, é sobretudo um dos mais notáveis produtos do intelecto do Homem e desempenha um papel na sua Civilização que nunca será demasiado sublinhar. Da roda à agrimensura, da cartografia à própria concepção físico-matemática do espaço, das construções arquitectónicas às artes visuais, a Geometria estuda abstracta e idealmente os espaços e as formas.
Hoje em dia, a Geometria abrange uma enorme variedade de disciplinas, técnicas e teorias, nomeadamente as geometrias euclidiana e não-euclidianas, geometria projectiva, geometria diferencial, geometria algébrica, geometria discreta e geometria computacional. A Geometria dos antigos, que nos foi legada, em particular, nos "Elementos" de Euclides, baseia-se no uso da régua e do compasso para a descrição e estudo do plano e do espaço à dimensão e escala humanas. Ela foi e terá que continuar a ser uma base essencial da educação e formação intelectual do Homem. Apesar de "mal tratada" por algumas correntes educacionais na segunda metade do século XX, a Geometria parece estar a recuperar o seu papel crucial no ensino da Matemática a todos os níveis.
Contrariar a tradicional imagem da Matemática como um assunto impopular, apesar de se lhe reconhecer a sua importância, passa por desfazer o mito de que ela não é senão um desenvolvimento das contas aritméticas ou uma variante árida da manipulação de números, como já em 1932 Hilbert referia a propósito de Geometria e Imaginação. Está fora de questão a importância da aritmética na aprendizagem e automatização de algoritmos básicos e da importância destes no ensino da Matemática, para além das controversas calculadoras de bolso. No entanto, e apesar de estas poderem conter uma componente gráfica, o papel da Geometria, clássica e moderna, continuará a ter uma importância formativa fundamental, quer na imaginação quer na demonstração matemáticas.
A geometria dinâmica, cujas raízes podem já ser encontradas nos gregos antigos e em outros matemáticos, como por exemplo em Clairault no século XVIII, baseia-se na ideia de movimentar elementos de figuras para ilustrar propriedades geométricas e demonstrar teoremas. A tecnologia dos computadores na década oitenta do século XX possibilitou o desenvolvimento de programas, tais como o "Cabri-géomètre, em França, e o "Geometer's Sketchpad" nos Estados Unidos da América, que permitem a manipulação por computador de objectos geométricos, com impacto e sucesso no ensino da Geometria elementar.
Criado em 1998 e baseado em princípios matemáticos sólidos, o sistema de geometria dinâmica Cinderella, com uma série de cliques no computador, permite obter construções complexas com correcção e consistência matemáticas e constitui um poderoso instrumento de apoio à compreensão, à apresentação, ao ensino e à descoberta das geometrias euclidiana, hiperbólica e esférica. O programa Cinderella, que integra este livro interactivo, ganhou o "European Academic Software Award 2000" e recebeu o prémio alemão de software educacional "Digita 2001".
Se as geometrias não-euclidianas nasceram do questionar o postulado das paralelas de Euclides, e por isso tiveram um forte impacto conceptual muito para além da Matemática, elas não são mais que uma forma natural de aceitar que a forma intrínseca do espaço não tem necessariamente que ser plana, mas pode ser curva. Em particular, as geometrias hiperbólica e elíptica, não puseram em causa os primeiros axiomas euclidianos, aceitando igualmente o que a nossa intuição está pronta a não questionar como algo de incontroverso, apesar das ambiguidades das suas expressões:
I. Um ponto é o que não tem partes nem tamanho; II. Uma linha é o que tem comprimento sem largura; III. As extremidades de uma linha são pontos; IV. Uma linha recta é a que está uniformemente entre as suas extremidades.
É claro que a noção de "comprimento" em Euclides é implícita, pois uma análise fina do postulado IV não garante que a linha em II seja necessariamente recta. Assim, negar o seu V postulado, ou seja, que por um ponto exterior a uma linha recta possa passar uma e uma única linha recta paralela à primeira, admitindo mais do que uma ou nenhuma, conduziu à construção das geometrias não-euclidianas (elíptica e hipérbolica) e veio reforçar o aspecto lógico-dedutivo da Matemática, para além de questionar a medição de distâncias e ângulos.
O sistema Cinderella constitui assim um instrumento complementar ao ensino e à prática da Geometria. Em particular, inclui um inovador sistema de teste automático de teoremas, que poderá ser útil se não fôr usado de modo dogmático. Este aspecto do sistema, que não usa métodos simbólicos para gerar demonstrações formais mas uma técnica altamente sofisticada de "teste aleatório de teoremas", poderá suscitar controvérsias e discussões interessantes, mas não deverá ser confundido como um substituto à demonstração lógica dos resultados ou propriedades das suas construções geométricas.
A leitura de um livro interactivo como este abre novas perspectivas na própria forma como a Matemática e, em particular, a Geometria, podem ser comunicadas. Para além da teoria, apenas parcialmente exposta, e dos exercícios nele propostos e de muitos outros que se encontram nos livros clássicos de Geometria e que se podem refazer, com a possibilidade de criação e exportação das suas construções para a WWW, o sistema Cinderella permite também a elaboração automática de exercícios interactivos e aplicações dinâmicas (Java applets) partilháveis através da Internet. Consequentemente, é ele próprio um instrumento de escrita de novos livros interactivos e assim um modelo de livro matemático para a Sociedade da Informação e do Conhecimento.
A edição portuguesa em suporte CD-ROM é do Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais da Universidade de Lisboa e teve o apoio do Departamento do Ensino Secundário do Ministério da Educação, enquadrando-se no âmbito das iniciativas na área da comunicação e divulgação das ciências matemáticas levadas a cabo pelo Projecto "Matemática em Acção" na sequência do Ano Mundial da Matemática.
José Francisco Rodrigues